UMA "ERA DE COMEMORAÇÃO"   

À alteração anteriormente enunciada, processada na passagem de uma História Nacional para uma Memória Nacional, corresponderia um processo metamórfico muito mais abrangente, decorrente de uma aliteração da consciência nacional do tipo histórico para o tipo patrimonial. A memória nacional renovava-se, no reconhecimento de distintos padrões de representação social, na emergência de novos paradigmas de identidade coletiva e correlatos património rememorativos. Fenómeno que não se limitou a França, tendo afetado todas as sociedades contemporâneas em que a redefinição da consciência nacional decorreu nos termos enunciados e que culminaria, de acordo com Pierre Nora, na emancipação de uma verdadeira Era de Comemoração patrimonial.1 
O modelo clássico de comemoração, inventado pela Revolução e consolidado pela República, correspondia à expressão concentrada da história nacional num momento solene,2 afirmação simbólica de ancestralidade e escolha de uma herança a ser transmitida às gerações futuras. Mas, na sociedade contemporânea, processa-se uma subversão do fenómeno comemorativo, que agora é atomizado ao nível de cada um dos grupos identitários emergentes e que, deste modo, buscavam um fio condutor no tecido social do presente e um contato direto com o seu passado particular. Consequentemente, a comemoração libertou-se dos lugares de simbolização que lhe eram tradicionalmente consagrados e toda a época se torna comemorativa, processo que impulsionaria o desenvolvimento de uma industria cultural em larga escala e à qual é impossível não associar um incremento do comércio turístico e a intervenção dos mídia.3 
De acordo Pierre Nora,4 a desintegração do modelo clássico de comemoração nacional ocorreria após a II Guerra Mundial, coincidindo com a emancipação democrática de um Estado Social, que se reconhece no seu multiculturalismo e ao qual assiste uma crescente intervenção das iniciativas regionais e locais, no domínio público das políticas culturais europeias. Em consequência, o fenómeno comemorativo adquire então um caráter dinâmico e variável, na medida em que passa a refletir os interesses das distintas instituições culturais atuantes no setor patrimonial, potencializando o desenvolvimento de controvérsias na definição dos mecanismos de simbolização - acontecimentos, datas, locais, figuras, objetos ou monumentos - atribuídos em cada momento de celebração nacional. 
Efetivamente, todo este processo de renovado interesse patrimonial, necessário à definição de um novo tipo de consciência nacional, decorreria paralelamente à alteração processada no próprio conceito de Património Cultural, cujo âmbito era agora alargado de forma a abarcar a totalidade do acervo nacional, em toda a sua extensão e variedade categórica. Neste particular, é relevante estabelecer uma aproximação entre as leituras de “Les Lieux de Mémoire” e de “Allégorie du Patrimoine”, obra da autoria de Françoise Choay e igualmente que coloca o conceito de Património Cultural no centro de uma profunda reflexão teórica sobre o destino da sociedade contemporânea:5 
Património. Essa bela e muito antiga palavra que estava, na origem, ligada às estruturas familiares, económicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo. Requalificada por diversos adjetivos, encontra-se no Património Histórico enquanto expressão que designa um fundo destinado ao usufruto de uma comunidade alargada a dimensões planetárias e constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que congregam a sua pertença comum ao passado. Na nossa sociedade errante, constantemente transformada pela mobilidade e ubiquidade do seu presente, o “património histórico” converteu-se numa das palavras-chave da tribo mediática, remetendo simultaneamente para uma instituição e uma mentalidade atual. Efetivamente, o culto que se rende hoje ao património histórico deve merecer de nós mais do que simples aprovação. Ele requer um questionamento, porque se constitui num elemento revelador, negligenciado mas brilhante, de uma condição da sociedade e das questões que ela encerra. 
De acordo com Françoise Choay,6 a implementação do conceito de Património Cultural na sociedade contemporânea decorreu de um processo de lenta e gradual aquisição, cujas etapas procura reconstruir partindo da análise evolutiva do conceito de monumento. A autora identifica duas fases essenciais neste processo: uma fase antiguizante, limitada às formas monumentais da Antiguidade Clássica instituídas pelo Renascimento, e uma fase de consagração, implementada pela Revolução Francesa.7 Esta última corresponderia à fase de institucionalização do conceito de Monumento Histórico, definido em torno de uma ampla legislação normativa e salvaguardado mediante os princípios teórico-metodológicos da conservação e restauro, disciplina que adquire então um domínio técnico autónomo.8 Posteriormente, com o advento da Era Industrial, o Monumento Histórico adquire um outro status, em função da nova hierarquia de valores9 mediante os quais o conceito era agora definido:10 
O advento da era industrial, enquanto processo de transformação mas também de degradação do ambiente humano, contribuiu, juntamente com outros fatores menos importantes como o Romantismo, para inverter a hierarquia de valores atribuídos aos monumentos históricos e para privilegiar pela primeira vez os valores da sensibilidade, nomeadamente os valores estéticos. A revolução industrial, enquanto rutura com os modelos tradicionais de produção, abria uma fratura irredutível entre dois períodos da criação humana e, quaisquer que tenham sido as suas datas (variáveis consoante os países), esta iria marcar a divisão entre um antes – em que se encontra acantonado o monumento histórico - e um depois – com o qual começa a modernidade. Enquanto processo de desenvolvimento planetário, a revolução industrial concedeu virtualmente ao conceito de monumento histórico uma conotação universal, contribuindo para generalizar e acelerar as legislações de proteção do património e, por outro lado, para fazer do restauro uma disciplina autónoma, solidária com os progressos da história da arte. 
Para Françoise Choay, a alteração paradigmática do conceito de Monumento Histórico e a sua substituição pelo conceito de Património Cultural, decorreu da necessidade em ampliar a representatividade patrimonial a outros vestígios da cultura material que, até ao momento, haviam sido considerados marginais, inferiores ou subalternos. A tripla extensão - tipológica, cronológica e geográfica - definida em torno do conceito de Bem Cultural, desenvolver-se-ia a partir de 1950 quando, muitos dos países pertencentes ao então designado Terceiro Mundo, iniciaram um processo de busca e definição da sua própria identidade cultural. Mas, foi sobretudo entre os países industrialmente desenvolvidos que se assistiu a uma verdadeira explosão de novos patrimónios:11 
Desde então, todas as formas da arte de edificar, eruditas e populares, urbanas e rurais e todas as categorias de edifícios, públicos e privados, sumptuários e utilitários, foram anexadas sob novas designações: arquitetura menor, expressão oriunda da Itália usada para designar as expressões privadas de monumentos; arquitetura vernacular, expressão oriunda da Inglaterra usada para distinguir os edifícios caraterísticos dos diversos territórios; arquitetura industrial das fábricas, das estações, dos altos-fornos, reconhecida em primeiro lugar pelos ingleses. Enfim, o domínio patrimonial deixou de estar limitado aos edifícios individuais; ele compreende, daqui em diante, os conjuntos edificados, o tecido urbano e a paisagem envolvente: quarteirões e bairros urbanos, aldeias, cidades inteiras e mesmo conjuntos de cidades, como o demonstra a Lista do Património Mundial estabelecida pela UNESCO. 
A 14 de maio de 1954, em Haia, era assinado o primeiro instrumento normativo de âmbito internacional e significativo para a proteção do Património Cultural: a Convenção de Haia para a Proteção da Propriedade Cultural em caso de Conflito Armado. Posteriormente, no seguimento da 17ª Assembleia Geral da UNESCO, ocorrida em Paris entre 17 de outubro e 21 de novembro de 1972, era adotada a Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, em resposta a uma preocupação crescente sobre o estado de conservação do Património Mundial. Do ponto de vista concetual, a Convenção apresentou a novidade de associar Bens Culturais e Bens Naturais, enquanto conceitos complementares, considerando que a identidade cultural dos povos decorre do meio natural em que estes se inserem. Neste tratado inédito, países de todo o mundo reconheceram a necessidade de proteger determinados bens patrimoniais, dotados de valor universal excecional e cuja responsabilidade carece da cooperação da comunidade internacional como um todo. A partir da Convenção de 1972, seriam constituídos vários instrumentos legais com vista à salvaguarda, conservação e valorização do Património Cultural, mas agora ampliados a toda uma nova ordem de valores e definidos em tornos de novas categorias de bens patrimoniais, numa tentativa de clarificação da identidade cultural dos povos e da memória coletiva da humanidade.12 
Pelo exposto, destaca-se a corelação expressa entre Identidade, Memória e Património, a qual é enunciada por Pierre Nora do seguinte modo:13 
Identidade, Memória e Património: as três palavras-chave da consciência contemporânea, as três faces de um novo continente, Cultura. Três palavras relativamente aproximadas, com amplas conotações, carregadas com múltiplos significados que ecoam e se reforçam entre si. Identidade refere-se a uma singularidade que se define a si própria, a uma especificidade que se assume a si própria, a uma permanência que se reconhece a si própria, a um sentimento tido de autoconsistência. Memória refere-se a múltiplas coisas – recordações, tradições, costumes, hábitos, práticas, costumes – e abrange uma gama que se desloca do consciente para o semiconsciente. E, pelo menos em França, o significado de Património mudou de propriedade herdada para o conjunto de possessões que fazem de nós aquilo que hoje somos. Estas três palavras converteram-se em algo circular, quase sinónimos, e a sua conjugação sugere uma nova configuração interna, uma nova economia, que não pode ser chamada por outra coisa que não seja Identidade Nacional. 
Mas, se na presente equação, todos os termos se encontram teoricamente em equilíbrio, como explicar a evidente sobrevalorização patrimonial pela sociedade contemporânea, que Pierre Nora define numa atitude de extrapolação comemorativa e Françoise Choay identifica como síndrome narcisista?14 Para ambos os autores, tal desequilíbrio decorreria da truncagem dos valores subjacentes aos critérios de definição da memória social e, consequentemente, de uma crise de identidade coletiva:15 
Em outras palavras, a observação e o tratamento seletivo dos bens patrimoniais já não contribuem para fundar uma identidade cultural assumida de forma dinâmica. Elas tenderiam a ser substituídas pela autocontemplação passiva e pelo culto de uma identidade genérica. Os traços narcisistas que aí existem já devem ter sido notados. O património teria assim perdido a sua função construtiva, substituída por uma função defensiva, que garantia a recuperação de uma identidade ameaçada. Pode-se, com efeito, interpretar essa profunda necessidade de uma autoimagem forte e consistente como uma maneira, encontrada pelas sociedades contemporâneas, de lidar com transformações que elas não dominam nem a profundidade nem o ritmo acelerado, e que parecem questionar a sua própria identidade. 
Significa também, tal como refere Pierre Nora, que a memória nacional não é mais um inventário fechado e que, no decurso do processo de agregação de novos patrimónios a um mesmo fundo de reserva cultural, se reestrutura o campo de forças16 que define os princípios construtores da identidade nacional. Campo cuja configuração está sujeita a um contínuo processo de mudança, intensificado na sociedade contemporânea pela emancipação de uma industria cultural de efeitos perversos17 e mediante a qual, nos termos propostos por Françoise Choay, se opera uma subversão do estatuto original dos bens culturais em bens de consumo imediato e valor económico acrescido. 
Para ambos os autores, no alcance de um processo de patrimonialização que se antevê infinito, a definição dos critérios de seleção dos bens culturais a salvaguardar parece ter sido colocada em segundo lugar pelas Políticas Culturais, dada a necessidade em complementar as centenas de coleções museológicas instituídas no decurso dessa emergência patrimonial.18 Paralelamente, no procedimento museológico subjacente, parece não ter havido qualquer relutância relativamente à heterogeneidade das culturas, dos usos e épocas a que pertenceram os bens culturais selecionados, absorvendo-se com avidez e de forma indiscriminada o conteúdo inteiro do museu imaginário,19 como se, pela acumulação de todas essas realizações e de todos esses traços, se tratasse de construir uma imagem da identidade humana.20 
Portanto, quer os novos patrimónios, quer os novos museus, ilustram esta mesma mudança de significado: num tempo que é composto de solidariedades infranacionais e transnacionais, o património cultural já não pretende representar a unidade nacional, mas antes possibilitar a emancipação dos particularismos subjacentes a distintos grupos sociais, no ressurgimento de uma identidade coletiva genuína. Porque este momento coincide com a transição de um lugar de memória restrita para um lugar de memória generalizadano grande deslizamento de terras que conduziu à perda da identidade nacional, a comemoração patrimonial converte-se na sua única promessa de continuidade.21 


1 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; pp. 609 a 637.
2 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; p. 626. 
3 De acordo com Pierre Nora, é possível polarizar a comemoração contemporânea a partir de dois modelos distintos de celebração: o modelo de Centenário, ilustrativo das comemorações do Bicentenário da Revolução Francesa; e o modelo de Geração, ilustrativo das comemorações do maio de 1968. O primeiro assume-se como um modelo neutro, que deriva da expansão mecânica do tempo,  enquanto o segundo corresponde a uma unidade existencial que confere significação ao tempo, mediante a forma como ele é experienciado. Consequentemente, implica uma multiplicidade de eventos em torno de qualquer data adquirida, possibilitando um retorno do tempo cronológico à vida. Por outras palavras: um polo temporal, método puramente aritmético de contagem anual de aniversários, encontra as ondas que emanam de um polo existencial, enquanto oscilações geracionais produzidas pelas camadas de sucessivas obrigações celebrativas, em resposta às progressivas necessidades emocionais da comunidade. Acrescenta o autor que, sem a existência destes dois instrumentos temporais – o Centenário e a Geração – certamente não existiriam comemorações, revelando-se a sua combinação necessária à determinação da agenda comemorativa e sua perpétua renovação ao longo do tempo. NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; pp. 609 e 610. 
4 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; pp.632 a 634. 
5 CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Estação Liberdade: Editora UNESP; São Paulo, 2001; p.11. 
6 CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; p.29. 
7 A consagração do conceito de Monumento Histórico e o consequente desenvolvimento de um primeiro aparato administrativo, jurídico e técnico para a sua conservação, decorreram da vasta metamorfose operada pela Revolução Francesa na relação dialética anteriormente mantida com o passado nacional. O conceito surge pela primeira vez em 1790, no seguimento da onda de destruição  ideológica despoletada pela Revolução Francesa, quando a Comissão de Instrução Pública define as categorias de monumentos históricos a salvaguardar e correspondentes instrumentos legais necessários à sua proteção. Posteriormente, em 1893, o recém-nomeado Ministro do Interior François Guizot, cria o cargo de Inspetor dos Monumentos Históricos, tendo por missão determinar quais os edifícios nacionais a que deveria ser atribuído esse estatuto. Deve-se observar contudo que, neste época, a análise do património histórico havia sido consagrada ao campo circunscrito da História da Arte, ainda que para Guizot e a maioria dos historiadores do seu tempo, os monumentos já não contribuíssem somente a instituição de um saber: independentemente da mediação da experiência artística, eles ilustravam e serviam um sentimento nacional. CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; p.145 e 146. 
8 A implementação desta nova disciplina não decorreria sem contradições. Refira-se a este respeito o antagonismo evidente entre as doutrinas de Viollet-le-Duc (1814-1879) e de John Ruskin (1814-1879) as quais opõem, respetivamente, um princípio intervencionista, predominante na maioria dos países europeus, a um princípio anti-intervencionista, sobretudo característico da Inglaterra. A incompatibilidade inicialmente revelada entre as duas doutrinas, seria resolvida por de Camilo de Boito (1835-1914) na obra “Conservar ou Restaurar: os Dilemas do Património” (1893), mediante a qual são definitivamente estabelecidos os princípios teórico-metodológicos da conservação e restauro enquanto disciplina científica. CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; p.164 a 166. 
9 O conceito de Valor, na sua relação com o Património Cultural, é primeiramente abordado na obra de Aloïs Riegl (1858-1905), historiador de arte austríaco que, no ano de 1903, publica em Veneza um célebre ensaio intitulado “Culto Moderno dos Monumentos: Características e Origem”. A publicação desta obra pressupõe uma profunda reflexão crítica sobre a noção de Monumento Histórico e sobre os valores que a sociedade contemporânea reconhece nos monumentos, nomeadamente: valores rememorativos (valor de antiguidade, valor histórico e valor rememorativo intencionado) e valores de contemporaneidade (valor instrumental e valor artístico). A análise de Riegl revela também os conflitos presentes entre os diferentes valores, em função do estado de conservação do monumento e do seu respetivo enquadramento social e cultural. GONZÁLEZ-VARAS, Ignácio; Conservación de Bienes Culturales: Teoria, Historia, Principios e Normas;Ediciones Cátedra; Madrid, 1999; pp. 38 a 43. 
10 CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; p.127. 
11 CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; p.12 e 13. 
12 A respeito das instituições e correspondentes instrumentos normativos de âmbito internacional, referentes à salvaguarda, conservação e valorização de bens culturais, vide GONZÁLEZ-VARAS, Ignácio; Conservación de Bienes Culturales: Teoria, Historia, Principios e Normas; Idem, Ibidem; pp.466 a 490. 
13 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; p.635. 
14 CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; p.240 a 247. 
15 CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; p.240 e 241. 
16 Se o campo de forças, que define os princípios construtores da identidade nacional, emerge das confrontações processadas entre diferentes grupos sociais, tal significa, de acordo com Jacques le Goff, que a memória coletiva não é somente uma conquista mas antes um instrumento de poder, mediante o qual se disputa pela dominação da recordação. LE GOFF, Jacques; História e Memória; Idem, Ibidem; p.476. Michel de Certeau, por sua vez, irá analisar a importância do mecanismo de confrontação entre grupos no processo de constituição da cultura em sociedade, adotando uma posição de recusa perante a uniformidade imposta pelos poderes instituídos, em nome de um interesse superior e de uso comum. Na obra “A Invenção do Quotidiano”, Certeau irá deslocar a atenção do consumo supostamente passivo dos produtos culturais recebidos, para a criação anónima, nascida da prática dos desvios de uso desses mesmos produtos: É preciso interessar-se, não pelos produtos culturais oferecidos no mercado de bens, mas pelas operações dos seus usuários; é mister ocupar-se com as maneiras diferentes de marcar socialmente o desvio operado num dado por uma prática. O que importa já não é e nem pode ser mais a “cultura erudita”, tesouro abandono à vaidade dos seus proprietários. Nem tampouco a chamada “cultura popular”, nome outorgado de fora por funcionários que inventariaram e embalsamaram aquilo que um poder já eliminou. Trata-se, portanto, de analisar a cultura no plural, esclarecendo os caminhos sinuosos que se percebem nas táticas astutas das práticas ordinárias. Por outras palavras, na perspetiva de Certeau, a multidão anónima não se limita a adquirir passivamente os produtos culturais disponibilizados pelo mercado de bens, dado que esse consumo é condicionado através das suas próprias opções, as quais têm a capacidade de modificar aquilo que lhe é culturalmente apresentado. CERTEAU, Michel de; A Invenção do Quotidiano: As Artes de FazerIdem, Ibidem; pp. 9 a 32. 
17 De acordo com Françoise Choay, a implementação de um culto oficial da cultura na sociedade contemporânea decorreu do grande projeto de democratização do saber, herdado do Iluminismo e reanimado pela vontade moderna, de erradicar as diferenças e os privilégios no usufruto de valores intelectuais e artísticos. Processo que decorreu a par do desenvolvimento da sociedade de lazer e do seu correlativo, o turismo cultural dito de massas, que originaria uma expansão significativa do público do Património Cultural. Paradoxalmente, refere a autora, ainda que esta Industria Cultural responda à procura de distração da sociedade contemporânea e confira, por acrescento, o estatuto social e a distinção relacionados com o consumo dos Bens Culturais, o acesso aos valores intelectuais e estéticos trazidos pelo património cultural é subvertido. Isto porque a seleção de Bens Culturais é processada de modo artificial, sendo apresentados como elementos resgatados de uma linearidade cronológica por uma memória artificial, que os retira de um quadro  de referência histórica e os impede de fixar na continuidade do tempo e dos acontecimentosVideCHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; Capítulo 6: “O Património Histórico na Era da Industria Cultural”. 
18 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; pp. 631 e 632. 
19 CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; p.247. 
20 CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; p.240. 
21 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; pp. 636 e 637.

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