quarta-feira, 29 de abril de 2009

Cruzeiros e Alminhas

Um dos cruzeiros da Via Sacra de Dornes

Os costumes religiosos são ainda bastante influentes no concelho de Ferreira do Zêzere, advindo este carácter da forte ruralidade concelhia, que marca igualmente o receio com que as comunidades locais encaram os estranhos e tudo aquilo que para elas é novo. De facto, para o aldeão o desconhecido provém sempre do exterior, que ameaça, com todos os seus perigos, o pequeno povoado. Como forma de defesa, a comunidade fecha-se sobre si mesma e cria, no seu interior, um espaço seguro. É essa a origem dos vários cruzeiros e “alminhas” que se erguem na berma dos caminhos, construções de forte carácter simbólico que orlam a passagem dos viandantes, sugerindo a totalidade do espaço segurizante da comunidade.
Para José Leite de Vasconcelos, esta preocupação para com a protecção mística dos viandantes remonta à época romana. Era então costume erigir nas bermas dos caminhos uma aedicula ou uma ara em honra dos lares compitales, divindades que, em algumas inscrições, se chamam de Bivii, Trivii ou Quadrivii, consoante o número de vias convergentes num determinado local. Desta tradição devem ter derivado os Cruzeiros e, posteriormente, os pequenos monumentos de concepção popular a que se convencionou dar o nome de Alminhas.
Na região de Ferreira do Zêzere, existe um sólido conjunto de catorze Cruzeiros, constituintes da Via Sacra que se desenvolve desde o Casal da Mata até Dornes, terminando junto da escadaria da igreja de Nossa Senhora do Pranto. Do ponto de vista arquitectónico, cada cruzeiro é constituído por um pódio de três degraus, sobre o qual se eleva uma base quadrangular, em cuja face frontal foi aplicado um painel azulejar referente a cada um dos passos da Paixão de Cristo. O revestimento azulejar é executado nos tons de azul e branco, num total de trinta unidades por painel. Sobre esta base, eleva-se uma cruz de Cristo, a uma altura de cerca de 4 metros, medindo a partir do nível do solo. Junto ao primeiro cruzeiro, duas epígrafes marcam o início da deambulação. A primeira alude ao ofertante: Esta via sacra foi oferecida ao santuário de Nossa Senhora do Pranto pelo Exmo. Senhor Durval do Rosário Marcelino e esposa. Eterna gratidão da paróquia de Dornes. Já a segunda mistifica o carácter sagrado do referido percurso: Pára e pensa. As 14 cruzes que vais visitar lembram-te o maior acto da história da humanidade. Um Deus-Homem morreu por ti.
De facto, as catorze estações da Via Sacra representam os episódios mais marcantes da Paixão e Morte de Cristo. A tradição, de origem franciscana, reproduz a Via Dolorosa, ou seja, o percurso feito por Jesus em Jerusalém, desde o tribunal de Pilatos até ao Calvário. Este culto foi criado no século XV, tendo recebido modificações sucessivas até ao estabelecimento da sua forma final, fixada pelos papas Bento XIV e Clemente XII, entre 1731 e 1742. Em Portugal, a devoção da Via Sacra foi instituída na segunda metade do século XVI e, ainda hoje, o ritual consiste em percorrer, assim como Jesus, as catorze estações que recriam os momentos da Paixão, parando em cada uma delas para meditar e rezar. No que se refere ao Culto das Almas e do Purgatório, este foi aceite pelo Papado desde o princípio da Cristandade, mas a sua existência apenas foi decretada a partir do II Concílio de Lião (1274). Durante os séculos XIV e XV o culto é reforçado e, apesar da contestação Protestante operada na centúria seguinte, o Concílio de Trento (1545-1563) vem a reafirmar a existência do Purgatório. Pouco tempo depois é criada a Confraria das Almas, órgão espiritual que chegou a Portugal em meados do século XVII. A pouca repercussão do Protestantismo no Reino levaria a que o Culto das Almas tivesse grande aceitação e popularidade entre os portugueses, propagando-se rapidamente.

"Alminha" existente na Igreja Nova do Sobral

Neste contexto, surgiram as primeiras “alminhas”, monumentos de expressão artística popular, mandados erigir na sequência de um voto ou de determinado acontecimento, como relatam as epígrafes que, por vezes, lhe são justapostas. As “alminhas” são geralmente constituídas por um nicho – que encerra uma imagem de vulto ou um painel azulejar – alusivo a um determinado santo protector, embora na sua forma mais simples se possam resumir a um simples marco crucífero. Perante uma “alminha”, o crente reza pelas almas do Purgatório, sendo o seu pedido reforçado por meio de uma oferenda: uma moeda na caixa das esmolas, um ramo de flores, um objecto de cera ou uma fotografia.
Estes monumentos disseminam-se um pouco por todo o concelho de Ferreira do Zêzere, mas talvez o mais pitoresco seja, em minha modesta opinião, aquele que se conserva em Igreja Nova do Sobral. Este pequeno oratório, que também é fonte, foi erigido no ano de 1957, na sequência da visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima à referida povoação. Por essa razão, o nicho encerra um painel azulejar alusivo a Nossa Senhora, acompanhado de vários azulejos avulsos, nos quais se lêem quadras referentes às “alminhas”: Em frente dumas alminhas / Não há decerto ninguém / Que não recorde saudoso / As almas que Deus lá tem. [Azulejo Nº1] As alminhas dos caminhos / Com singeleza e com graça / Lembram o eterno destino / Ao viandante que passa. [Azulejo Nº2] Rezemos todos p’las almas / Pois quem é que lá não tem / Um parente ou um amigo / Um bom pai ou santa mãe. [Azulejo Nº3] A Virgem Nossa Senhora / Quando em Fátima poisou / Que rezassem pelas almas / Aos portugueses mandou. [Azulejo Nº4].
Merece idêntico destaque a “alminha” do lugar do Castelo, Freguesia de Ferreira do Zêzere, dedicada a Nossa Senhora da Paz. O oratório, erigido no ano de 1991, é dominado por um nicho de grandes dimensões, no interior do qual figura uma imagem de vulto da santa padroeira. Mas outros destes pequenos monumentos podem ser citados: como a “alminha” consagrada a Nossa Senhora do Rosário, erigida junto à antiga escola primária de Areias; ou o pequeno oratório instituído pelo pastor José Abreu, a 25 de Julho de 1965, na estrada que do Beco vai para Dornes; não esquecendo a já tão deteriorada “alminha” dedicada a Nossa Senhora de Fátima, construída junto à estrada de Areias para Pias.

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