quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Sobre a Visão Patrimonial de Pierre Nora em "Les Lieux de Mémoire"

As Três Faces da Cultura: Identidade, Memória e Património

Por Ana Torrejais

É dessa forma, na verdade, que se entra no Conservatoire des Arts et Métiers, em Paris, depois de se haver passado por um pátio setecentista, e avançando pela velha igreja abacial, engastada no complexo mais tardio, tal como foi outrora engastada no priorato de origem. Ao entrarmos, somos ofuscados por essa conspiração que congrega o universo superior das ogivas celestes e o mundo octânico dos devoradores de óleos minerais.
Espalhados pelo chão, um cortejo de veículos automóveis, bicicletas e carroças a vapor; no alto ameaçam as máquinas aéreas dos pioneiros da aviação, e em alguns casos os objetos expostos são os originais, embora descascados ou corroídos pelo tempo, e ali todos juntos aparecem, na luz ambígua em parte natural e em parte elétrica, como cobertos por uma pátina, por um verniz de violino antigo; vez por outra surgem esqueletos, chassis, desarticulações de bielas e manículas que ameaçam inenarráveis torturas, e te pões a imaginar-te atado a essas camas de suplício donde pode surgir de repente alguma coisa que te embarafuste pela carne e te leve à confissão fatal.
E para além dessa sequência de antigos objetos móveis, agora imóveis, de alma enferrujada, puros signos de um orgulho tecnológico que os quiseram expostos à reverência do público, velado à esquerda por uma estátua da Liberdade, modelo reduzido daquela que Bartholdi havia projetado para um outro mundo, e à direita por uma estátua de Pascal, abre-se o coro, onde, fazendo coroa às oscilações do Pêndulo, encontra-se o pesadelo de um entomólogo enfermo - quelas, mandíbulas, antenas, proglótides, asas, patas -, um cemitério de cadáveres mecânicos que poderiam voltar a funcionar todos ao mesmo tempo - magnetos, transformadores monofásicos, turbinas, grupos conversores, máquinas a vapor, dínamos - e, ao fundo, além do Pêndulo, no ambulacro, ídolos assírios, caldeus, cartagineses, grandes Baals de ventres outrora incandescentes, virgens de Nurembergue com seus corações hirtos de cravos postos a nu, aquilo que no passado foram motores de avião - indizível coroa de simulacros que jazem em adoração ao Pêndulo, como se os filhos da Razão e das Luzes tivessem sido condenados a custodiar pela eternidade o próprio símbolo da Tradição e da Sabedoria.

Humberto Eco, O Pêndulo de Foucault 













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