domingo, 26 de outubro de 2008

Torre da Murta

 
Património classificado do Concelho de Ferreira do Zêzere [IIP; Dec. Nº 32973, DG175, de 18 de Agosto de 1943], a Torre da Murta – também conhecida por Torre do Ladrão Gaião ou Torre do Langalhão – situa-se na freguesia de Areias, mais concretamente no lugar do Pereiro, num morro próximo à EN 110.
As origens deste imóvel encontram-se envoltas na penumbra da lenda, síndroma místico que se deve, em grande parte, ao facto de ainda se encontrar por realizar um aprofundado estudo arqueológico no local que, de certo, ajudaria a perceber melhor o seu passado. No entanto, sabe-se que, ao tempo da Reconquista Cristã, a Torre da Murta terá funcionado como uma importante estrutura defensiva, complementar ao sistema de fortificações então existentes no corredor Douro-Tejo que, deste modo, dificultariam o acesso mouro ao norte cristão.
Parte do território conquistado aos sarracenos nesta região estendia-se entre as terras de Alvaiázere e Vila de Rei, constituindo-se um extenso Reguengo, a que se deu o nome de Monsalude, que posteriormente seria fraccionado em diferentes parcelas, entregues a diferentes forças administrativas. É desta forma que, em 1135, D. Afonso Henriques doa a sua herdade de Pedrógão a Osberto, Mónio Martins e Fernão Martins, para que a ocupassem e rentabilizassem. Esta parcela administrativa incluía ainda a propriedade da Torre da Murta que, em 1152, pertencia a D. Gaião, alcaide de Santarém, personagem imortalizada na tradição oral ferreirense por todo o conjunto de lendas geradas em torno do lugar e que encontram a sua máxima expressão numa das próprias designações do imóvel: Torre do Ladrão Gaião.
Segundo uma dessas lendas (que, no entanto, pode apresentar variantes), Gaião seria um gigante que habitava nesta torre, roubando os transeuntes que por ali passavam. Certo dia, porém, um pequeno homenzinho, que transportava consigo uma bolsa de moedas de ouro, vendo-se cercado pelo gigante, esperou que este se inclinasse para o roubar. Ao fazê-lo, o homenzinho apunhalou o ventre de Gaião que, no entanto, ao cair esmagou o seu assassino. Outra lenda, idêntica à anterior, refere que nesta torre viveria igualmente um gigante que, tendo um pé em casa, chegava com o outro ao Pereiro, apanhando deste modo as raparigas, que levava para a torre, onde deixavam a virgindade.
Apesar do carácter fantasioso destas histórias, não se pode desprezar, contudo, que estas encerram quase sempre algum fundo de verdade. De facto, no seguimento da tradição muçulmana, as atalaias medievais poderiam servir como locais onde se instalava, durante determinados períodos de tempo, o alcaide, ou seja, o governador militar do território concelhio e, como tal, comandante da hoste local. Ao alcaide cabia também a responsabilidade pelo policiamento local, desempenhando funções judiciais e recebendo, inclusivamente, os dinheiros ou géneros respeitantes ao pagamento de imposto e taxas tributáveis à população local. Por tudo isto, e dada a posição privilegiada que ocupava na comunidade, o alcaide era geralmente encarado com um certo desdém pelos restantes indivíduos, que nele viam um opressor aos seus interesses.
D. Gaião doaria a propriedade da Torre da Murta à Ordem do Templo que, por volta de 1159, era limítrofe à herdade do Castelo e Termo de Ceras, pertencente à mesma Ordem. Já por essa altura a atalaia se encontrava arruinada, pois quando D. Gualdim Pais passou pelo Castelo de Ceras, então totalmente derrubado, o único lugar fortificado que encontrou foi o Castelo do Ladrão Gaião, que ficava a cerca de uma légua de distância, e cujas paredes se encontravam igualmente destruídas. Para este estado de decadência, que se estendeu a outras fortificações da região – como Dornes e Monsalude –, contribuíram três ordens de factores: em primeiro lugar, a destruição causada pelos conflitos gerados na sequência do movimento de Reconquista; em segundo lugar, o aparecimento de novos pólos fortificados – como Tomar e Almourol –, estrategicamente mais fortes do ponto de vista militar e administrativo; em terceiro lugar, a cessão dos conflitos – com a conquista definitiva do Algarve, em 1252 –, o que conduziria ao abandono definitivo das estruturas defensivas ou ao seu reajustamento a outras funções.
No que se refere à Torre da Murta, a função que melhor lhe coube foi a de armazém de colheitas ou outros bens comunitário. De facto, quando Frei Afonso, Vigário de Tomar, a visitou em 1416, servia como celeiro, onde era depositada a cevada de pagamento ao arrendamento da herdade, então emprazada a Martim Correia, Guarda-mor do Infante D. Henrique e o primeiro dos doze Senhores da Torre da Murta. Na sua origem, a Torre da Murta apresentar-se-ia como uma atalaia medieval de grandes dimensões, pois os dois paramentos, Sul e Nascente, que se aguentaram na verticalidade até aos dias de hoje, deixam ainda perceber a sua estrutura paralelipipédica. Esta subdividir-se-ia em três sobrados de paredes robustas, construídas em pedra calcária, num aparelho de alvenaria relativamente homogéneo.
Quanto ao seu cariz militarizante, este é denunciado quer pela robustez do aparelho construtivo, quer pela única fresta que sobreviveu na parede nascente da construção; porém, no que se refere à existência de ameias e matacães, à muito que estes desapareceram, pois o terceiro patamar da fortificação já quase desapareceu por completo. Assim sendo, aos dias de hoje, chegou-nos uma estrutura bastante arruinada, cujo estado de abandono é agravado pela inexistência de um trilho de acesso ao imóvel, que assim permanece oculto pelos extensos matagais e pelo lixo que se vai acumulando em seu redor.
Por esta razão, poucos são hoje aqueles que, na própria região, conhecem a Torre da Murta, ou melhor, as duas teimosas paredes que insistem em assinalar a sua presença no alto do morro que as viu nascer. Contudo, as pessoas do lugar do Pereiro lá vão ouvindo falar de uns “muros muito antigos”, que as lendas e as histórias vão animando e trazendo à vida. Não fossem elas, e a presença da Torre da Murta já há muito que se havia apagado da memória das gentes. Confesso que, eu própria, dificilmente teria dado pela sua existência, se não tivessem sido os “velhos”, mas também os mais sábios guardiães das memórias, a falar-me dessa Torre, que os tempos baptizaram com tantos nomes.
E, assim, perdendo-me por aqueles trilhos que nos levam sabe lá Deus onde, deparar-me-ia com o espectáculo da antiga construção que, quase totalmente deitada por terra, ainda nos atinge com significativa imponência. Por tudo isto, é necessário intervir, quanto antes, com vista à consolidação estrutural do imóvel, assim como apostar na revalorização do seu enquadramento físico.

1 comentário:

Unknown disse...

Adorei seu texto, espuma branca erguendo-se aflita depois de morta a onda contra o cais: assim me sinto eu, com esta unica fé... que me diga um breve "até já", ou "até que o Olimpo queira"... Diogo