O CONCEITO DE "LUGAR DE MEMÓRIA" 

O conceito de lugar de memória foi adaptado por Pierre Nora do descrito pela historiadora britânica Frances Yates no livro “The Art of Memory” (1966)1, obra que se reporta à evolução das técnicas mnemónicas no mundo ocidental. Estas referem-se a sistemas auxiliares de memória baseados num método introspetivo de organização da informação a reter em loci memoriae,2 com caráter significativo e facilmente reconhecidos pelo indivíduo, e através dos quais se exerce essa rememoração mecânica.
Pierre Nora irá transferir o conceito do campo da memória individual para o da memória coletiva, nos termos propostos por Maurice Halbwachs em “The Collective Memory”, fenómeno que Halbwachs define no limite dos cadres sociaux da experiência quotidiana.3 Desta forma, pretende analisar quais os princípios simbólicos subjacentes à instituição dos distintos loci memoriae da nacionalidade francesa e através dos quais se manifestam correspondentes patrimónios rememorativos. Donde a seguinte definição proposta pelo autor: 4
Um lugar de memória, é uma entidade significativa, quer seja de natureza material ou não-material, que pela imposição da vontade humana ou através do trabalho do tempo, se converteu num elemento simbólico do património rememorativo de uma determinada comunidade. 
Enquanto entidade simultaneamente simbólicafuncional e material, congrega as categorias de identidade, memória e património. Consubstancia, por isso, um amplo repositório de elementos patrimoniais rememorativos - não só lugares geográficos, mas também espaços públicos e culturais, monumentos e edifícios, objetos artísticos e literários, figuras históricas e datas emblemáticas – mediante os quais, pela imposição de uma consciência histórica, a memória nacional se cristaliza e a identidade coletiva emerge, gerando sentimentos de pertença no seio de diferentes grupos sociais:5 
São lugares, com efeito, nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em diversos graus. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada lembrança. Os três aspetos coexistem sempre. 
Tratam-se, portanto, de lugares totémicos de mediação entre distintas camadas de significação, decorrentes de uma sobredeterminação do presente pelo passado ou da memória pela história, possibilitando-se deste modo o forjar de novos paradigmas de identidade cultural. 


1 KRITZMAN, Lawrence; “In Remembrance of Things Frenchforeword”; in Realms of Memory: the construction of the French Past; tradução francês-inglês de Arthur Goldhammer; Columbia University Press; New York, 1996; p. ix. 
2 Interessa reter que, de acordo com Frances Yates, os sistemas clássicos de mnemónica haviam possibilitado a transformação da memória numa composição de lugares, preparando deste modo a mutação moderna do tempo em espaço controlável. No seu livro “The Art of Memory”, a autora serve-se de uma passagem das “Confissões” de Santo Agostinho, escritas entre os anos de 397 e 398 d.C., para tentar demonstrar a operacionalidade do mecanismo de rememoração, processa nesses loci memoriae: Eu cheguei até aos campos e espaçosos palácios da memória, em que se encontram os tesouros de inumeráveis imagens, trazidas até aí através de todo o tipo de coisas apercebidas pelos sentidos. Lá está armazenado, para além daquilo que pensamos, ainda que ampliando, diminuindo ou, de qualquer outra forma variando, esse sentido das coisas de que nos apercebemos; e, por mais que tenha sido comprometido, esse sentido que eclode ainda não foi engolido e enterrado pelo esquecimento. Assim que lá entrei, requeri imediatamente aquilo que devia ser recuperado, surgindo algo instantaneamente; alguns sentidos devem ser procurados profundamente, como se se encontrassem num recetáculo mais interno; outros há que saem correndo apressadamente e, sempre que algo é desejado e requerido, colocam-se logo na dianteira, como que a dizer “serei por acaso eu”? Esses sentidos eu afasto, com a mão do meu coração, do rosto da minha lembrança; até que aquilo que eu desejo seja revelado e apareça à minha vista, fora do seu lugar secreto. Outros sentidos surgem prontamente, em ordem não alterada, assim que são requeridos; esses, eu coloco em frente abrindo o caminho para os seguintes e, à medida que abrem esse caminho, tudo aquilo que se encontra longe da minha vista prontamente surge assim que eu o desejo. Tudo isto acontece sempre recito qualquer coisa a partir do meu coração. (Santo Agostinho, Confissões, X, 8). YATES, Frances; The Art of Memory; The University Chicago Press, 1966; p. 46. 
3 Maurice Halbwachs define o conceito de memória coletiva, por contraposição e justaposição ao conceito de memória individual, os quais relaciona do seguinte modo: Admitamos todavia que haja, para as lembranças, duas maneiras de se organizar e que possam, ora se agrupar em torno de uma pessoa definida, que as considere de seu ponto de vista, ora distribuir-se no interior de uma sociedade grande ou pequena, de que elas são outras tantas imagens parciais. Haveria então memórias individuais e, se o quisermos, memórias coletivas. Em outros termos, o indivíduo participaria de duas espécies de memórias. Mas, conforme participe de uma ou de outra, adotaria duas atitudes muito diferentes e mesmo contrárias. De um lado, é no quadro de sua personalidade, ou de sua vida pessoal, que viriam tomar lugar suas lembranças (…). De outra parte, ele seria capaz, em alguns momentos, de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para evocar e manter as lembranças impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo. Se essas duas memórias de penetram frequentemente, em particular, se a memória individual pode, para confirmar algumas de suas lembranças, para precisá-las e mesmo para cobrir algumas das suas lacunas, apoiar-se sobre a memória coletiva (…), nem por isso deixa de seguir seu próprio caminho, e todo esse aporte exterior é assimilado e incorporado progressivamente à sua substância. A memória coletiva, por outro, envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. HALBWACHS, Maurice; A Memória Coletiva; Vértice Editora; São Paulo, 1990; p. 55. 
4 NORA, Pierre; “From Lieux de Mémoire to Realms of Memory”; Idem, Ibidem; p. xvii. 
5 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.21 e 22.  

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