HISTÓRIA E MEMÓRIA  

Em “Les Lieux de Mémoire”, a categoria conceptual de memória, que se contrapõe à de história e na qual se inclui igualmente a de esquecimento,1 define a variedade de formas através das quais as diferentes comunidades culturais se imaginam a si próprias, mediante diversos modelos representacionais.2 Por essa razão, permite não só agregar elementos identitários no interior de comunidades distintas, mas demonstra igualmente como a consciência individual do passado é sintomática do desaparecimento de certas tradições culturais outrora existentes:3 
A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da mudança e do esquecimento, inconsciente das suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas falências e repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenómeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. A história, uma representação do passado (…) operação intelectual e laicizante, que demanda análise e discurso crítico. (…) A história pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece um relativo. 
Apesar da contraposição imanente dos termos, o binómio memória-história define uma dimensão polireferenciada, cujos constituintes se sobredeterminam reciprocamente e, por essa mesma razão, potencializadora de resistências e conflitos, gerados sobretudo entre distintas gerações de indivíduos. Tais “descontinuidades”, seriam impulsionadas na confluência e justaposição de diversos mitos e tradições culturais, apropriados por propósitos ideológicos divergentes, mas configuradores do relacionamento da comunidade com o seu próprio passado. 
Nesse sentido, Pierre Nora distingue entre uma memória verdadeira, que decorreria da transmissão intergeracional, em contínua transformação, dos saberes instituídos pela tradição no presente, e uma memória integrada, que resultaria da reconstrução intelectual do passado pelo presente, e que define como problemática e incompleta, por expressar uma realidade que já não existe.4 Donde, na sociedade contemporânea, ao interromper-se o fluxo anteriormente mantido entre as diferentes dimensões temporais, a memória apenas possa subsistir em lugares específicos, nos quais se opera essa simulação ou rememoração do passado:5 
Os lugares de memória (lieux de mémoire) existem por não existirem mais ambientes de memória (milieux de mémoire), nos quais a memória se constituía como uma parte real da experiência quotidiana. São antes lugares de rememoração, nos quais a memória se constitui como parte ativa. 
Essencialmente, porque os mitos e tradições culturais, outrora mantidos pelas sociedades pré-modernas num espaço atemporal e de oscilação pendular entre passado, presente e futuro, se converteram na sociedade contemporânea em dimensões simbólicas reposicionadas fora da prática quotidiana e, consequentemente, para além do fluxo continuum da vida.6  
Por essa razão, são sintomáticos de uma consciência histórica que sobrevive somente enquanto memória desincorporada. Paradoxalmente, um lugar de memória converte-se num lugar de esquecimento, seja pela revolução industrial e urbana que descaracterizou as comunidades tradicionais baseadas na transmissão oral dos saberes, seja pela globalização e mediatização dos costumes nos rituais da contemporaneidade. Assinala-se deste modo o fim das sociedades memória, como todas aquelas que asseguravam a conservação e a transmissão dos valores, igreja ou escola, família ou estado, mas também o fim das ideologias memória, como todas aquelas que asseguravam a passagem regular do passado para o futuro.7 
Tal significa que o conhecimento detido pela sociedade contemporânea sobre o passado, deriva essencialmente de uma prática hermenêutica, que reinterpreta as tradições culturais em função das exigências sociais do presente. Opera-se, deste modo, uma reciclagem do conhecimento mediante a construção de novas representações simbólicas e configuradoras de rememorações patrimoniais distintas. Por outras palavras, apreendemos o passado tal como o representamos através das lentes do presente.8 


1 A contraposição imanente dos termos, no par memória-esquecimento, e a sua transposição de um quadro de expressão psicológica/individual para outro de expressão social/coletivo, são colocadas em evidência por Jacques le Goff. Refere o autor que a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. Deste ponto de vista, certos aspetos do estudo da memória podem evocar, de forma metafórica ou de forma concreta, traços e problemas da memória histórica e da memória social. Por exemplo, da mesma forma que a amnésia é, não só uma perturbação do indivíduo, mas envolve igualmente perturbações mais ou menos graves da personalidade, também a falta ou a perda, voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e nas nações, pode determinar perturbações graves da identidade coletiva. Os psicanalistas e os psicólogos insistiram, quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento, nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição e a censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Efetivamente, tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes ambições das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominaram as sociedades históricas; os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. LE GOFF, Jacques; História e Memória; tradução de Bernardo Leitão; Editora UNICAMP; Campinas, 1990; pp. 423 a 426. 
2 KRITZMAN, Lawrence; “In Remembrance of Things French”; Idem, Ibidem; p. ix 
3 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.9. 
4 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.8. 
5 KRITZMAN, Lawrence; “In Remembrance of Things French”; Idem, Ibidem; p. xii. 
6 No sentido antigo do termo, a memória ou métis, designava uma pluralidade de tempos e não se limitava, por conseguinte, somente ao passado. Reportando-se ao mecanismo de articulação do tempo no espaço organizado, operado mediante um princípio de ocasião, Michel de Certeau irá analisar a mobilidade da memória no tempo e as correspondentes alterações singulares provocadas no espaço. Entendida enquanto saber prático, para Certeau a memória resulta de uma solicitação externa e cuja resposta se inscreve nos lugares que modifica: “Este saber se faz de muitos momentos e de muitas coisas heterogéneas. Não tem enunciado geral e abstrato, nem lugar próprio. É uma memória, cujos conhecimentos não se podem separar dos tempos de sua aquisição e vão desfiando as suas singularidades. Instruída por muitos acontecimentos onde circula sem possuí-los (cada um deles é passado, perda de lugar, mas brilho de tempo), ela suputa e prevê também “as vias múltiplas do futuro”, combinando as particularidades antecedentes ou possíveis. Assim se introduz uma duração na relação de forças, capaz de modifica-las. A “métis” aponta com efeito para um tempo acumulado, que lhe é favorável, contra uma composição de lugar, que lhe é desfavorável. Mas a sua memória continua escondida (não tem lugar que se possa precisar), até ao instante em que se revela, no “momento oportuno”, de maneira ainda temporal embora contrária ao ato de se refugiar na duração. O resplendor dessa memória brilha na ocasião. CERTEAU, Michel de; A Invenção do Quotidiano: As Artes de Fazer; tradução de Ephram Ferreira Alves; Editora Vozes; Petrópolis, 1998; pp. 157 a 165. 
7 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.8. 
8 KRITZMAN, Lawrence; “In Remembrance of Things French”; Idem, Ibidem; p. xiii. 

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