DE "HISTÓRIA NACIONAL" A "MEMÓRIA NACIONAL" 

Ao propor-se recuperar a história de França através da memória, em “Les Lieux de Mémoire” inaugura-se uma nova historiografia da nacionalidade francesa a qual, embora mantenha uma perspetiva de continuidade em relação ao movimento dos Annales,1 assinala já uma outra abordagem. De acordo com Pierre Nora, esta Nova História,2 reposicionada para além de qualquer visão universalista desenvolvida a priori, capacitaria os historiadores na interpretação de outros mitos e tradições nacionais, decorrentes dos mais diversificados padrões de representação identitária e pela emergência, ao longo do tempo, de vestígios históricos específicos. Tal transposição, de uma consciência nacional totalitária, para outra de caráter mais relativo, derivava de um reconhecimento da alteração de status da nacionalidade francesa que, reformatada pela integração europeia e pela regionalização interna, se conscientizava agora do seu poder diminuto:3 
O término do ressurgimento da estabilidade rural através do crescimento económico, o repentino despertar dos sonhos gauleses de grandiosidade e a dissipação de uma miragem em que a pátria da revolução havia tanto tempo desejava acreditar – estas três ondas de choque repentinamente começaram a ressoar juntamente com uma outra quando, depois do governo de Jacques Chirac, haviam falhado todas as tentativas em revitalizar a economia. Consecutivamente, o ano de 1977 foi o ano de alinhamento europeu em torno de uma política monetária comum e, inevitavelmente, França teve de se curvar perante a realidade de uma economia internacional: como resultado, os franceses interiorização a transição do seu país de um status de grande poder para outro de poder mediano. 
Contrapunha-se, por isso, ao método historiográfico tradicional que, essencialmente baseado na análise de fontes arquivísticas, havia possibilitado o incremento de uma consciência nacional de amplo espectro identitário e forte sentido patriótico. Tendência positivista, promotora de um sentimento de pertença a um passado comum e metodicamente reconstruído, no qual os acontecimentos se sucedem de forma linear e cumulativa. Fazendo-se substituir à memória, atribuía-se ao conhecimento histórico a formação da consciência nacional, ainda que esta derivasse, segundo Pierre Nora, de um procedimento de pendor iconoclasta. Paradoxalmente, ao selecionar criteriosamente os acontecimentos a transmitir às gerações futuras, a história afastava-se do seu próprio passado, encerrando-o sob uma idade mítica:4 
No passado existia uma História Nacional, agregada a diferentes grupos de memória essencialmente de caráter privado. Uma história essencialmente mitológica, quer em sua estrutura, quer em sua função: um vasto recitativo, suficientemente homogéneo quanto ao seu quadro, cronologia, pontos de viragem obrigatórios, figuras consagradas e uma hierarquia de eventos para permitir a sua comunicação e uma completa penetração no tecido social. Uma prática que parecia adaptada às necessidades projetivas e identificativas de uma idade mitológica no desenvolvimento individual. Por outro lado, existiam memórias privadas, decorrentes de experiências históricas silenciadas e repassadas através de familiares e conhecidos, memórias envolvendo experiências individuais e costumes comunitários, associados ao local, regional, religioso, profissional ou tradições folclóricas, assim como memórias relacionadas com aprendizagem individual e de proximidade. A identidade nacional era forjada através de todos estes ingredientes. 
A República Francesa havia sido constituída sobre os princípios universais de liberdade, igualdade e fraternidade, advindos da Revolução de 1789, e necessários à defesa dos imperativos éticos e morais que permitiam manter a nacionalidade coesa sob os mesmos valores definidores de identidade coletiva. Complementarmente, tal consciência histórica, imanente do conjunto das tradições culturais representativas dessa mesma identidade, decorria do desenvolvimento de uma perspetiva teológica da Nação que, deste modo, se assumia como autoridade pedagógica fundamental para o reconhecimento da mitologia nacional:5 
Houve um tempo em que, através da história e em torno da nação, uma tradição de memória parecia ter achado a sua cristalização na síntese da Terceira República Francesa. História, Memória e Nação mantiveram então, mais do que uma circulação natural, uma circularidade complementar, uma simbiose em todos os níveis, científico e pedagógico, teórico e prático. 
A partir de década de 1970, no decurso dos vários constrangimentos ideológicos, políticos, económicos e geoestratégicos que haviam acometido França durante a segunda metade do século XX, instala-se um período de crise que colocará em causa todos os princípios basilares da memória nacional republicana.6 Perante a ameaça do seu desaparecimento, irá desencadear-se um processo de autoconsciência nacional, responsável pelo repensamento de toda a tradição historiográfica francesa. Consequentemente, libertando-se da identificação nacional, a Nação deixa de ser habitada por um sujeito portado, perdendo a sua vocação pedagógica na transmissão de valores.7 Donde, se a Nação não é mais o quadro unitário que encerra a consciência da coletividade, fragmenta-se o sentimento pátrio, assim como toda a conjugação anteriormente enunciada: a Nação não é mais um combate, mas um dado, a História converteu-se numa ciência social e a Memória num fenómeno puramente privado.8 
Inaugurava-se, segundo Pierre Nora, uma era de descontinuidade histórica9, caracterizada por um deslocamento da preocupação historiográfica da Nação para a Sociedade e, consequentemente, por uma metamorfose nos quadros sociais da memória coletiva. Por outras palavras, a história não se ocupa mais dos grandes acontecimentos nacionais, mas antes das múltiplas memórias particulares complementares à identidade coletiva:10 
Os dois grandes temas de inteligibilidade da história, ao menos a partir dos tempos modernos, progresso e decadência, ambos exprimiam bem esse culto de continuidade, a certeza de saber a quem e ao que devíamos o que somos. (…) É esta relação que se quebrou. Da mesma forma que o futuro visível, previsível, manipulável e balizado, projeção do presente, se tornou invisível, imprevisível, incontrolável. Chegamos, simetricamente, da ideia de um passado visível a um passado invisível, de um passado coeso a um passado que vivemos em rompimento, de uma história que era procurada na continuidade de uma memória a uma memória que se projeta na descontinuidade de uma história. 
Aliteração paradigmática, mediante a qual a imposição da consciência histórica, de caráter totalitário, é sobredeterminada pela emancipação da memória nacional, de caráter relativo, ressurgindo a Nação enquanto entidade simbólica. Deriva-se da continuidade da história para a descontinuidade da memória e, no equilíbrio destas duas forças, geram-se novos valores definidores de uma nação de memória, por justaposição ao próprio conceito de lugar de memória proposto por Pierre Nora:11 
O tempo dos lugares é esse momento preciso onde desaparece um imenso capital que nós vivíamos, na intimidade de uma memória, para só viver sob o olhar de uma história reconstruída. Aprofundamento decisivo do trabalho da história, por um lado, emergência de uma herança consolidada, por outro (…), esgotamento do nosso quadro histórico político e mental, suficientemente poderoso ainda para não nos deixar indiferentes, bem pouco consistente para só se impor por um retorno sobre o seus mais evidentes símbolos. Os dois movimentos se combinam para nos remeter, de uma só vez e com o mesmo élan, aos instrumentos de base do trabalho histórico e aos objetos mais simbólicos da nossa memória. (…) Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa (…). É a desritualização do nosso mundo que faz aparecer a noção. 
Deste modo, entende-se a nacionalidade enquanto espaço polifónico,12 porque decorrente de uma historiografia registada a diferentes vozes, emergentes da confluência e justaposição de distintos padrões de representação identitária. Aos grandes quadros unitários da memória nacional, contrapõem-se agora outras memórias não convencionais, específicas de grupos sociais minoritários que, até então, haviam sido negligenciados pela historiografia nacional. Assim sendo, identidade nacional é redefinida, no alcance de um modelo cultural difratado e no qual se descobrem novos patrimónios rememorativos:13 
Aquilo que atualmente designamos por Memória, na verdade assinala um avanço da consciência história de tradições extintas, a recuperação reconstrutiva de fenómenos dos quais havíamos sido separados e que são de interesse direto para aqueles que pensam em si mesmos como descendentes e herdeiros dessas mesmas tradições. A história oficial não sentia qualquer necessidade em ter em consideração tais tradições, porque geralmente o “grupo nacional” foi construído sufocando-as ou reduzindo-as ao silêncio, ou porque elas simplesmente não emergiam enquanto tal na história. Agora que tais grupos estavam a ser incorporados na história nacional, contudo, eles sentiam uma necessidade urgente em reconstruir as suas tradições através de todos os meios disponíveis, desde os mais ad hoc aos mais científicos, isto porque a tradição de cada grupo fazia parte da sua própria identidade. A memória do grupo é, de facto, a sua própria história. 
O esforço a desenvolver pelo novo método historiográfico consistira, assim, na decomposição dessa unidade nacional, forçando-a a abandonar a homogeneidade atribuída ao tempo histórico, ao ponto de se destruírem as clássicas identidades temporais. Por outras palavras: escrutinar, sobre o microscópio do historiador, os muitos blocos construtivos através dos quais as representações tradicionais de França teriam sido construídas.14 
A alteração processa-se, de acordo com Pierre Nora,15 na passagem de uma História Nacional, idade mítica enriquecida de múltiplas tradições seculares, para uma Memória Nacional, cuja unidade decorre de uma demanda patrimonial difratada, em constante expansão e busca de coerência. Mas, porque a memória nacional apenas se pôde desenvolver na sequência do reenquadramento histórico da nação, tal modificação pressupôs, de igual modo, um reajustamento das instituições responsáveis pela salvaguarda das distintas categorias patrimoniais então emergentes e uma intervenção pública cada vez maior nesse domínio. 


1 Fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch, em 1929, a designada Escola dos Annales consiste num movimento historiográfico organizado em torno do periódico acadêmico francês Annales d'histoire économique et sociale, e que se destacou ao incorporar os métodos pluridisciplinares das Ciências Sociais na História. Atendendo ao princípio de desenvolvimento de uma História Total, propunha-se ir além da visão positivista do método historiográfico tradicional, tido como crónica de acontecimentos, pelo que se irá focar na análise das estruturas sociais de longa duração. De acordo com Jacques le Goff, o conceito de longue durée, estabelecido por Fernand Braudel num artigo publicado em 1958, decorre inicialmente da ideia de multiplicidade dos tempos sociais elaborada por Maurice Halbwachs. Na perspetiva de Braudel, o tempo histórico processar-se-ia a ritmos diferentes e a tarefa do historiador seria, primordialmente, a de reconhecer tais ritmos. Assim, Braudel propõe a distinção de três velocidades históricas: "tempo individual", o tempo rápido e agitado dos acontecimentos; "tempo social", o tempo intermediário dos ciclos econômicos, ritmando a evolução das sociedades; "tempo geográfico", um tempo muito lento e quase imóvel, o das estruturas sociais. Nesse sentido, e considerando a aceleração do tempo histórico operada na sociedade contemporânea, o estrato de análise mais relevante para o historiador seria o das estruturas sociais, o nível das “longas durações” de um tempo quase imóvel e no qual se encerram os processos de desenvolvimento civilizacional. A partir da década de 1960, a Nova História desenvolvida pela classe académica francesa irá assinalar uma importante mudança: o conceito de longue durée é reposicionado em função da tentativa de redefinição da identidade imemorial de uma França profunda. Não obstante, ao abandonar-se a continuidade da história para se instalar na descontinuidade da memória, dá-se origem a um certo sentido de alienação da sociedade. Nas palavras de Jacques le Goff: o que aqui estava em causa era a quebra de um eixo organizacional e de  um enquadramento representativo fixo; ou seja, o fim de uma previsibilidade científica que havia restaurado a liberdade do passado, reabastecendo-o de significado e reinstalando a sua legitimidade. LE GOFF, Jacques; História e Memória; “História”; Idem, Ibidem; pp. 17 a 165. 
2 Nos termos propostos por Pierre Nora, a Nova História configurava-se como: Uma história menos interessada nas causas do que nos seus efeitos; menos interessada nas ações recordadas ou até mesmo comemoradas, do que nos vestígios deixados por essas ações e na interação dessas comemorações; menos interessada nos eventos por eles próprios do que na construção dos eventos ao longo do tempo, no desaparecimento e reemergência das suas significações; menos interessada naquilo que realmente aconteceu do que no seu perpétuo reuso e mistura, na sua influência em sucessivos presentes; menos interessada em tradições do que no modo como essas tradições são constituídas e transmitidas. Em resumo, uma história que não é nem uma ressurreição, nem uma reconstituição ou reconstrução, nem mesmo uma representação mas, no seu sentido mais forte, uma rememoração. Uma história que está interessada na memória, não como uma recordação, mas antes como uma estrutura de conjunto do passado com o presente: uma história de segundo grau, capaz de conciliar as exigências da ciência juntamente com as demandas da consciência. NORA, Pierre; “From Lieux de Mémoire to Realms of Memory”; Idem, Ibidem; p. xxiv. 
3 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; p.624. 
4 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; p.625. 
5 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.10. 
6 De acordo com Pierre Nora, a desintegração da História enquanto mito subjacente ao destino da Nação, ocorreu durante a primeira metade do século XX mas, sobretudo após a II Guerra Mundial, essencialmente devido ao rompimento da relação anteriormente mantida entre duas noções fundamentais - Nação e Civilização – de cuja união derivava um simples mas potente silogismo: a marcha da Humanidade através do Progresso procede por meio da conquista da Razão. O agente histórico do Progresso da Razão é o Estado-Nação, de que a Revolução Francesa constitui o exemplo  por excelência. Este silogismo, profundamente enraizado na consciência coletiva, constituía o princípio gerador da mitologia nacional que, deste mesmo modo, era integrada a um nível mundial, motivo pelo qual a História de França não pertencia apenas a França. Donde, a destruição do mito da nacionalidade francesa não decorreu somente das divisões internas nascidas da I Guerra Mundial, agravadas na decorrência da II Guerra Mundial e continuadas através da Guerra Fria. Estava igualmente relacionada com o fim da hegemonia europeia sobre o mundo e, consequentemente, com o términus da ideia de Civilização. NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; p.633. 
7 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.12. 
8 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.12. 
9 NORA, Pierre; “From Lieux de Mémoire to Realms of Memory”; Idem, Ibidem; p. xxii. 
10 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.19. 
11 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.12. 
12 NORA, Pierre; “From Lieux de Mémoire to Realms of Memory”; Idem, Ibidem; p. xxiii. 
13 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; p.626. 
14 NORA, Pierre; “From Lieux de Mémoire to Realms of Memory”; Idem, Ibidem; p. xx. 
15 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; Idem, Ibidem; p.636. 

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