CONCLUSÃO 

Ao focar-se no desaparecimento de determinados rituais e certas tradições culturais outrora existentes em França, Pierre Nora sugere como, partindo do modelo de análise crítica proposto em “Les Lieux de Mémoire”, a reescrita da história nacional pode forjar novos paradigmas de identidade coletiva, mediante a reinterpretação dos quadros sociais da memória e correspondentes patrimónios rememorativos. Efetivamente, ao reordenar-se a lógica subjacente à constituição de uma nação da memória¸ na qual emergem distintos padrões de representação identitária, o que transparece é uma outra ideia de nacionalidade, mediante o desenvolvimento de uma consciência patrimonial de caráter difratado. 
Nesta era da comemoração, associada a uma reflexão patriótica nostálgica e articulada pela rememoração contemporânea, dilata-se a perceção histórica do passado em função da constante atualização dos acontecimentos no momento presente: aceleração da história e vertigem de uma identidade plástica que, pelos efeitos de mundialização, democratização, massificação e mediatização, se transmuta do tempo vivido para o da experiência imediata.1 
No âmbito do novo enquadramento estabelecido pelas políticas culturais europeias, a importância conferida à memória e a sua reintegração na sociedade contemporânea, decorrem de uma tentativa para contraria o desaparecimento da própria identidade coletiva e a contínua perda de referencial, mediante a sobrevalorização da celebração patrimonial:2 
A própria perda da nossa memória nacional viva nos impõe sobre ela um olhar que não é mais ingénuo, nem indiferente. Memória que nos pressiona e que já não é mais nossa, entre a dessacralização rápida e a sacralização provisoriamente reconduzida. Apego visceral que nos mantém ainda devedores daquilo que nos engendrou, mas distanciamento histórico que nos obriga a considerar com um olhar frio a herança e a inventariá-la. Lugares salvos de uma memória na qual não mais habitamos, semioficiais e institucionais, semiafetivos e semisentimentais; lugares de unanimidade sem unanimismo, que não exprimem mais nem convicção militante, nem participação apaixonada, mas onde palpita ainda algo de uma vida simbólica. Oscilação do memorial ao histórico, de um mundo onde se tinham ancestrais a um mundo da relação contingente com aquilo que nos engendrou, passagem de uma história totémica para uma história crítica: é o momento dos lugares de memória. 
No extremo, é a constatação de um sentimento de desorientação que permite explicar a busca compulsiva de sentido identitário nesses lugares simbólicos em que a memória coletiva se encerra e que celebração patrimonial pretende resgatar. Daí resulta a constituição de tudo em arquivos, a dilatação indiferenciada do campo do memorável, o inchaço hipertrófico da função da memória, ligada ao próprio sentimento da sua perda.3 Consequentemente, se ninguém sabe do que o passado é feito, uma inquieta incerteza transforma tudo em vestígios, indício do possível, suspeita de história com a qual contaminamos a inocência das coisas.4 
Se não sabemos mais quem somos, reconstruímos artificialmente a nossa identidade à luz do que não somos mais, como sugere Pierre Nora,5 mirando-nos num espelho cujo reflexo não reconhecemos, explicita Françoise Choay.6 Fragmentos de memória através do quais a sociedade contemporânea procura se reencontrar e nos quais projeta as suas esperanças futuras. E é nesses vestígios do passado que se incorporam os mitos, medos e crenças, elementos deificados de uma outra era, numa etérica infusão de sentidos reconduzidos no fluxo contínuo da vida. Dimensões refratárias de uma existência única e pulsante, compreendidas enquanto manifestações de uma consciência incorporada, simultaneamente individual e coletiva, mas eternamente unificada.


1 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.8. 
2 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; pp. 13 e 14. 
3 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.15. 
4 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.20. 
5 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História”; Idem, Ibidem; p.20. 
6 CHOAY, Françoise; A Alegoria do Património; Idem, Ibidem; p.248. 

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