INTRODUÇÃO

Les Lieux de Mémoire” trata-se de uma obra de autoria conjunta, coordenada por Pierre Nora e publicada pela Editora Gallimard, entre 1984 e 1992. Na sua primeira edição, foi lançada em sete tombos, organizados de acordo com três temáticas complementares – la Republique, la Nation et les Frances – tendo sido posteriormente reeditada e reorganizada em apenas três volumes, em versão francesa e inglesa, esta última pela Columbia University Press.
Do ponto de vista historiográfico, esta obra reúne uma série de ensaios extremamente inovadores que, embora mantenham uma perspetiva de continuidade em relação ao movimento dos Annales, assinalam já uma nova abordagem na escrita da história nacional e que pode ser enquadrada na denominada nouvelle histoire francesa.1 No âmbito desta Nova História, desenvolvida pela classe académica francesa durante a década de 1960, nomeadamente a partir da abordagem proposta por Jacques le Goff e Pierre Nora, o novo método historiográfico focar-se-á, em consonância com as transformações operadas nos distintos campos das Ciências Sociais, na análise dos grandes quadros sociais da memória coletiva, em busca pela redefinição da identidade imemorial de uma França profunda.2
Pierre Nora irá desenvolver grande parte do seu trabalho intelectual sobre a análise das categorias conceptuais de memória e história, adotando como objeto de estudo o próprio território francês, percurso que irá confluir na edição do primeiro volume de “Les Lieux de Mémoire”, em 1984. A ideia original para a produção desta obra derivou, de acordo com o próprio autor,3 dos seminários sobre História do Presente que Nora havia organizado, entre 1978 e 1981, na École des hautes études en sciences sociales de Paris, centrados na discussão de questões relacionadas com as definições de memória e identidade no mundo contemporâneo. 
Efetivamente, no decurso dos vários constrangimentos ideológicos, políticos, económicos e geoestratégicos que haviam acometido França durante a segunda metade do século XX, instala-se um período de crise que colocará em causa os princípios universais de liberdade, igualdade e fraternidade e, juntamente com eles, todos os imperativos éticos e morais que haviam permitido manter um espírito de coesão nacional sob os mesmos valores definidores da identidade coletiva. 
O conceito de lugar de memória, que dirige toda a obra e lhe atribui o título, decorre assim da emergência de um processo de autoconsciência nacional, que procura reencontrar os lugares simbólicos da memória coletiva, perante a ameaça velada do seu desaparecimento. Mas não se trata de um simples elenco de lugares identitários; pelo contrário, tal procedimento afigura-se a Pierre Nora como algo de inoperante e desprovido de sentido. Propõe-se antes, para além da realidade histórica subsistente, a reconciliação simbólica desses lugares no presente, por intermédio de uma atitude rememorativa:4 
A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este momento particular da nossa história: momento de articulação, onde a consciência da rutura com o passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas cujo esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema da sua encarnação.
Aos grandes quadros unitários da memória nacional, contrapõem-se agora outras memórias não convencionais, específicas de grupos sociais minoritários que, até então, haviam sido negligenciados pela historiografia nacional, redefinindo-se a identidade nacional no alcance de um modelo cultural difratado em que se descobrem novos patrimónios. Efetivamente, com a publicação dos três últimos volumes de les Frances, progride-se de um conceito relativamente “estreito” de lugar de memória, explorado em la Republique e em la Nation, para outro de âmbito muito mais alargado.5 No primeiro caso, procuraram-se identificar os mais significativos lugares de memória nacional, revelando-se paralelamente a existência de pontos de confluência e laços de agregação conjunta. No segundo caso, reposiciona-se a abordagem, colocando-se a tónica na compreensão do próprio processo de articulação da memória, ou seja, na análise dos aspetos latentes da memória nacional e do seu amplo espetro de fontes. Esta simples mudança de método converteria “Les Lieux de Mémoire” num projeto muito mais ambicioso, que se propunha agora, nas próprias palavras do autor, a recuperar a história de França através da memória,6 por intermédio da prospeção desses lugares simbólicos em que se constitui um sentido de identidade aglutinador de contribuições múltiplas e, no interior dos quais, naturalmente se geram espaços de conflito ou de coesão, explorados mediante diferentes propósitos ideológicos, políticos, económicos e culturais.



1 De acordo com Peter Burke, o termo “Nova História”, cuja problemática definição o autor se esforça em colocar, decorre da publicação dos três volumes da obra “Fazer a História: novos Problemas, novas Abordagens e novos Objetos”, sob a direção conjunta de Jacques le Goff e Pierre Nora: O termo “Nova História” é mais conhecido em França. “La Nouvelle Histoire”, é o título de uma coleção de ensaios editados pelo distinto medievalista francês Jacques Le Goff. Le Goff também auxiliou na edição conjunta dos três volumes de uma coleção massiva de ensaios, preocupados com os “Novos Problemas”, as “Novas Abordagens” e os “Novos Objetos” do método historiográfico. Nestes casos, torna-se evidente aquilo que constitui a Nova História: é uma história “made in France”, o país da “la nouvelle vague” e do “le nouveau roman”, para não mencionar da “la nouvelle cuisine”. Mais exatamente, é uma história associada à reconhecida “École des Annales”, agrupada em torno do periódico académico francês “Annales d’histoire économique et sociale”.BURKE, Peter; “Overture: the New History, its Past and its Future”; in New Perspetives on Historical Writing; University Park, PA: The Pennsylvania State University Press; 1992; pp. 1 a 25. 
2 NORA, Pierre; “The Era of Commemoration”; in Realms of Memory: the construction of the French Past; tradução francês-inglês de Arthur Goldhammer; Columbia University Press; New York, 1996; pp. 621 e 622.
3 NORA, Pierre; “From Lieux de Mémoire to Realms of Memory: preface to the english-language edition”; in Realms of Memory: the construction of the French Past; tradução francês-inglês de Arthur Goldhammer; Columbia University Press; New York, 1996; p. xv.
4 NORA, Pierre; “Entre a Memória e a História: a problemática dos Lugares”; in “Projeto História – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP”; Nº10, dezembro 1993; tradução francês-português de Yara Aun Khoury; p.7. 
5 NORA, Pierre; “From Lieux de Mémoire to Realms of Memory”; Idem, Ibidem; p. xvii. 
6 NORA, Pierre; “From Lieux de Mémoire to Realms of Memory”; Idem, Ibidem; p. xviii.

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